domingo, 17 de julho de 2016

Reflexos

O espelho não fala quem você é. A vida, sim.
O cabelo é hidratado com os melhores cremes. Pintado com cor de ouro. Alisado pelas melhores mãos. O cérebro é do tamanho de um amendoim, que não sabe nada sobre sinônimos e antônimos, concordâncias e regências, emes e enes, ser ou não ser, amar e renunciar.
As pálpebras são esfumadas com a sombra perolizada, os cílios são alongados com fios especiais, a sobrancelha é definida pela técnica mais moderna, a lente colore com a cor que se pensa ser mais bela que a natural. Os olhos não enxergam nada além do próprio umbigo.
O calcanhar é lisinho, o sapato é de couro de algum animal em extinção, o salto tem quinze centímetros, o andar é o mais elegante, sensual, ensaiado no tapete do quarto. Os pés nunca pisaram o chão quente de pedregulhos pra saber o quanto dói.
As unhas são esmaltadas iguais às da atriz, os anéis são de ouro daquela joalheria "top", os cremes contra rugas e manchas vieram do exterior. As mãos são vazias de gestos benevolentes ou singularmente corriqueiros e nunca seguraram de verdade em outras mãos com força e verdade.
Os lábios se cobrem com o mais caro batom de efeito matte, os dentes clareados no consultório brilham como na propaganda do creme dental, o botox esconde os possíveis vincos de expressão. A boca não mostra o sorriso escrachado e espontâneo e não fala das coisas da vida e dos sentimentos reais, puros e simples.
O corpo é de Barbie, esculpido na academia e na fome. As roupas são caras, da boutique de "marca" do shopping de bacana. O perfume é "original", porque Paraguai é coisa de pobre. A alma é infeliz, solitária, medrosa, insegura, cinza, sem brilho e vida. Porque já não sabe mais ser diferente depois de tantas máscaras. E mais: já não quer mais ser outra coisa, senão algo que cause - sempre - boa impressão a quem vê. Nem que isso custe chorar sozinha no travesseiro da cama de casal do quarto escuro, de porta fechada pra não gerar suspeitas.
Vale a pena pensar na frase estampada em letras de alvenaria na entrada do cemitério da cemitério da cidade, ainda que pareça idiota: "morre-se como se vive"...
O espelho não fala quem você é. A vida - e a morte - sim

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